.. nunca foi fácil isto de nós os dois. primeiro era eu que pensava que não queria receber-te. o meu coração parecia estar demasiado magoado da passagem anterior. convenci-me a mim própria de que estava a fazer-me difícil para ti quando, na verdade, estava desejosa que alguém abrisse os braços para me receber. tu já tinhas percebido isso (sempre foste estupidamente inteligente para perceber as pessoas) e foste jogando o jogo. mais ou menos como o rato e gato. sempre soubeste bem como conduzir, como convencer e manipular. comigo, antes do tudo, sempre usaste as palavras certas no momento certo. e eu deixei-me ir.
começou por ser divertido. eu em Coimbra, tu em Lisboa, eu não levava as coisas assim tão a sério, enganando-me e pensado que tinha encontrado a coragem para, por uma vez, ser comandante da relação. confiava tanto por não ter medo de perder, nem coragem de enfrentar o futuro. e tu mostravas ciúmes irascíveis que eu acreditava serem de um amor verdadeiro que tinha ali nascido por mim. gostava tanto disso.
era quase perfeito e eu ignorava os sinais, ignorava o que me desagradava, ignorava a pessoa que sabia que eras .. acho que, no fundo, não queria saber disso para nada. costumavas abrir a mão esquerda e esticar o dedo indicador direito. dizias que há sempre aquele que apanha e o que se deixa apanhar. fechavas com o força o dedo na mão e depois com ele sempre esticado dizias "eu sou este. o apanhado por ti". e sentia-me como uma mão poderosa. mas era um rato.
faltou o emprego, faltou o dinheiro e eu não me importei. nem pensei. eu sempre tive tudo e nunca neguei nada a ninguém. muito menos o meu coração.
e eram as noites e os dias que se misturavam. as horas que se trocavam. eu ia para aulas e tu dormias, eu estudava e tu bebias. e vinham as conversas acesas, as discussões. eu sentia-me sempre culpada no final de cada uma. era o rato que, manipulado, se aninhava no gato.
era o mesmo tecto para nós os dois. e mesma cama. os jantares, as receitas inventadas, os passeios pelas ruas de Coimbra todas as noites. uma rotina imposta pela falta de emprego, a falta de dinheiro e por nunca me faltar nada.
não consegui imaginar outra forma diferente senão voltar para Lisboa contigo e precipitarmo-nos para uma casa. os dois. eu queria-a pequenina, mobilada, uma coisa singela ao jeito dos contos de fadas. gastar pouco. arriscar pouco dentro do risco maior que era fechar os olhos aquilo que sabia que iria acontecer. tu querias tudo novo, tudo bonito, a cheirar bem, no centro e muito caro. fizeste as birras de sempre para eu concordar. e eu, concordei. mesmo com aquele aperto no estômago, concordei. sabia que não era o certo, tu já andavas distante, pouco carinhoso, na cama não existias há meses e a bebida nunca te deixou ser meu.
entrámos na casa nova. emprego novo. para mim e para ti.
noites a beber, discussões atrás de discussões. e a culpa que eu sempre senti de tudo. culpa de não entender, culpa de exigir de mais, de não te saber amar, de não saber viver.
fui engolindo o arrastar de meses que ia ignorando, com gritos, insultos camuflados, as bebedeiras, horas sem saber de ti, as mentiras, os telefonemas sem resposta e as mensagens esquecidas. fui desaparecendo dentro de mim.
murros na parede, o sofá partido. coisas atiradas pela janela, os ultimatos, as ameaças. e eu ali, entre lágrimas, arranhadelas a mim própria, o bater com a cabeça na chão e o medo de perder tudo.
sempre o rato com medo do que o gato possa fazer, mas com aquela vontade de lhe sentir os bigodes.
roupas. coisas para a casa. jantares. fora e dentro. receitas experimentadas, noitadas ... foi-se o dinheiro e com ele, já há muito, tinha desaparecido a minha inocência.
mas noite após noite continuava a acreditar sempre que era desta, era desta vez que as coisas mudavam. tu ias querer ser diferente comigo e, principalmente, contigo. ias querer ser crescido, viver uma vida a sério e reconhecer a mulher que tinhas do teu lado.
mudámos de casa, mudámos de sítio. as coisas mudaram um pouco. mas as mentiras vieram connosco. e com elas a sensação continuamente pesada de que sempre me tomaste por demasiado tua, por demasiado cega. e era. Tua. e cega.
rata cega com a perfeita noção de que era propositado o torpor em que me metia.
Continuava a apetecer-me desaparecer, não existir, deixar de sentir. E tu chamavas-me preguiçosa. E eu na preguiça tratava de tudo, das contas, da casa, do dinheiro que já pouco tínhamos, das limpezas, das arrumações, de ti. E nunca soubeste ver isso.
nunca houve um período fácil e simples. sem preocupações. só felicidade e amor. nunca houve. e sei bem que nunca haverá. porque o mundo não muda, e nós fazemos parte do mundo.
aquilo que és, está dentro de ti e provavelmente eu nunca saberei viver com isso. o que se passa é que, também não sei já como viver sem tudo isto e quando penso em deixar-te o peito vira-se ao contrário cá dentro e parece que o quero vomitar.
não sei, e acho que nunca saberei, entender qual a razão para estares tão presente às vezes e tão ausente na maioria das outras. mas a verdade é que nos poucos momentos em que te sinto comigo, sou a pessoa mais feliz de sempre. e tu fazes sacrifícios. eu sei. mas também sei que nunca serão suficientes.
Porque tu e eu nunca seremos suficientes um para o outro.