vai ficar tudo bem .

" achas que um dia tudo vai passar ? " perguntou-lhe D. com aquela voz trémula de quem pergunta mas receia a resposta que pode vir a conseguir.
L. ficou suspenso no mesmo momento, imóvel, sem razões aparentes de ter sequer a mais ínfima vontade de lhe responder. lá fora na janela molhada, a chuva teimava em cortar os passos curtos e apressados de quem ainda se atrevia em vir à rua. há dias e dias que nem se viam os gatos rondar o jardim e só a cachorra da dona M. aparecia de quando em vez para um pratinho de restos do jantar. "deve andar prenha" pensou D. quando a viu pela última vez .
" achas que um dia tudo vai passar ? " perguntou-lhe de novo, pegando-lhe na mão gelada e hirta.
" mas porque não me respondes tu ? não entendo este teu silêncio disfarçado de uma presença praticamente invisível! " 

houve uma altura no tempo, uma altura diferente, em que os silêncios intermitentes eram preenchidos o mais que possível com palavras soltas e risos desconcertantes. não havia proibições, delimitações. não existia horas, e os dias eram meras demarcações ridicularizadas no trepidar das canções. dantes, o depois era uma invenção do mundo, e só o agora fazia sentido. o futuro era algo que se tornava desfocado quando se tentava desenhar com pincéis às cores e, por isso, apenas o presente se sujeitava a receber em si qualquer paleta disponível na imaginação do momento. 
bastava ordenar que os pés andassem, e os pés levavam para qualquer sítio. aqui ou no fim do mundo. nem sequer interessava. desde que fossem. e ali se demorassem. 
a companhia era algo não negociável. nem questionável. bastava aparecer que já se sabia o destino. as frases construídas, a maioria das vezes, não eram convidadas a juntar-se ao cenário, e era nesses momentos que os olhares se cruzavam e travavam dos diálogos mais eloquentes que a noite testemunhara.
e quando nem sequer os olhares se viam, era o tacto que eles conheciam. luz apagada .a ponta dos dedos . o cheiro das vozes surdas que se tocavam em pleno pecado segredado.
e era assim que se consumiam. dia após dia. noite após noite. até que as semanas e os meses deixaram de ter um nome pelo quais se pudesse chamar. 

D. deu o gole final no café que já se adivinhava frio. gelado. o fundo da caneca, escuro como o decorrer dos dias anteriores (ou seriam meses?), podia perfeitamente acompanhar na procissão, os farrapos   perdidos no seu corpo, à procura de saída. pegou-lhe no braço e levou-o com ela. sentou-o devagarinho na ponta da cama.
" pões as meias .sabes que tens sempre frio ao adormecer ".
lentamente, deixou que seu corpo escorregasse pelos lençóis. ajeitou-lhe as mantas e beijou-o. apesar de tudo, o sabor doce que conhecia não tinha desaparecido de seus lábios.
desligou a luz e deixou-se adormecer.  "

- Quando é que os descobriram?
- Uma semana depois ...mas dizem que ele já estava morto muito antes!
- Como assim?
- Dizem que ele já devia ter morrido umas boas semanas antes de os encontrarem. 
- E ela ?
- Ela ...já tinha a alma morta há muito mais !



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